"As mentes primárias dividem sempre a realidade em dois blocos conflitantes. Para elas, o dia se opõe à noite, o claro ao escuro, o interior ao exterior, a vida à morte, o macho à fêmea, e a vida seria um conflito entre o bem e o mal, o certo e o errado, o pobre e o rico, o bandido e o mocinho.
Organizado assim, o Universo tem sua estrutura prefixada. Cada um sabe o seu lugar e a História gira sobre um eixo estável. Isto é apaziguante. Sobretudo para quem se julga do lado certo.
Em séculos anteriores, essa oposição foi representada de diversas maneiras. O Mundo já foi dividido entre o império romano e os bárbaros, entre os cristãos e os mouros, entre a Europa e os selvagens de além-mar. Em nosso século, essa visão simplória do real ganhou consistência na oposição primária entre capitalismo e comunismo. O século XX foi todo gasto dentro deste falso dilema, como se as pessoas só pudessem comer um desses dois pratos, só pudessem viver numa dessas margens e a História tivesse que andar com essas duas pernas contraditórias. Para se resolver o maniqueísmo começou-se a usar a palavra "dialética", como se ela fosse um talismã capaz de solucionar os impasses do pensamento primário. Com o desmonte do bloco soviético e a metamorfose do comunismo em algo que não se sabe bem o que será, muita gente está desnorteada, a História parece ter perdido o eixo, e a vida seu sentido. As pessoas sentem falta do oponente.
...Como um monge medieval que tivesse passado a vida inteira pelejando contra o demônio e um dia desperta com a notícia de que o diabo não existe; como um soldado que tivesse partido para a frente de batalha e quixotescamente se dá conta de que não há senão moinhos de vento onde pensou haver dragões e tropas inimigas; como um sentinela que tivesse passado toda a vida na torre de uma fortaleza no deserto esperando o ataque inimigo e descobre que nenhum inimigo surgirá no horizonte esperado; como o atleta que tivesse exercitado o músculo para uma olimpíada e descobre que o adversário não virá; enfim, como todas essas metáforas que a literatura contemporânea, a partir de Kafka, utilizou para mostrar o absurdo da condição humana, muitos se acharam com essa perplexidade na boca: - O oponente, onde está o oponente?
Metafísica e subjetivamente, muitos preferiram dizer; - Meu oponente sou eu. É dentro de mim que está a luta. Isto tem lá a sua parcela de verdade. Projeta-se para fora ou para dentro um drama imaginário. Mas isto é também perigoso. Internalizar as dualidades pode ser apenas uma nova forma de exercitar o conflito.
Portanto, depois dessa penosa e secular experiência, seria aconselhável que não saíssemos por aí buscando bandeiras novas apenas para substituir as velhas. A própria metáfora da bandeira é velha. Parece coisa de um universo militar antigo, quando havia o exército do bem e o exército do mal.
O oponente, onde está o oponente?
Revisando a questão do oponente chegaremos inevitavelmente à revisão do eu. E é aí dentro que uma vez mais a História recomeça" (SANT'ANNA, AFONSO ROMANO DE ."O Oponente Onde Está o Oponente?", Jornal O Globo, 27 de Outubro de 1991, Rio de Janeiro, p.3).
Organizado assim, o Universo tem sua estrutura prefixada. Cada um sabe o seu lugar e a História gira sobre um eixo estável. Isto é apaziguante. Sobretudo para quem se julga do lado certo.
Em séculos anteriores, essa oposição foi representada de diversas maneiras. O Mundo já foi dividido entre o império romano e os bárbaros, entre os cristãos e os mouros, entre a Europa e os selvagens de além-mar. Em nosso século, essa visão simplória do real ganhou consistência na oposição primária entre capitalismo e comunismo. O século XX foi todo gasto dentro deste falso dilema, como se as pessoas só pudessem comer um desses dois pratos, só pudessem viver numa dessas margens e a História tivesse que andar com essas duas pernas contraditórias. Para se resolver o maniqueísmo começou-se a usar a palavra "dialética", como se ela fosse um talismã capaz de solucionar os impasses do pensamento primário. Com o desmonte do bloco soviético e a metamorfose do comunismo em algo que não se sabe bem o que será, muita gente está desnorteada, a História parece ter perdido o eixo, e a vida seu sentido. As pessoas sentem falta do oponente.
...Como um monge medieval que tivesse passado a vida inteira pelejando contra o demônio e um dia desperta com a notícia de que o diabo não existe; como um soldado que tivesse partido para a frente de batalha e quixotescamente se dá conta de que não há senão moinhos de vento onde pensou haver dragões e tropas inimigas; como um sentinela que tivesse passado toda a vida na torre de uma fortaleza no deserto esperando o ataque inimigo e descobre que nenhum inimigo surgirá no horizonte esperado; como o atleta que tivesse exercitado o músculo para uma olimpíada e descobre que o adversário não virá; enfim, como todas essas metáforas que a literatura contemporânea, a partir de Kafka, utilizou para mostrar o absurdo da condição humana, muitos se acharam com essa perplexidade na boca: - O oponente, onde está o oponente?
Metafísica e subjetivamente, muitos preferiram dizer; - Meu oponente sou eu. É dentro de mim que está a luta. Isto tem lá a sua parcela de verdade. Projeta-se para fora ou para dentro um drama imaginário. Mas isto é também perigoso. Internalizar as dualidades pode ser apenas uma nova forma de exercitar o conflito.
Portanto, depois dessa penosa e secular experiência, seria aconselhável que não saíssemos por aí buscando bandeiras novas apenas para substituir as velhas. A própria metáfora da bandeira é velha. Parece coisa de um universo militar antigo, quando havia o exército do bem e o exército do mal.
O oponente, onde está o oponente?
Revisando a questão do oponente chegaremos inevitavelmente à revisão do eu. E é aí dentro que uma vez mais a História recomeça" (SANT'ANNA, AFONSO ROMANO DE ."O Oponente Onde Está o Oponente?", Jornal O Globo, 27 de Outubro de 1991, Rio de Janeiro, p.3).
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