No terceiro milênio, os homens terão ainda necessidade de pão. Mas os responsáveis pelos destinos dos povos não mais poderão se limitar a satisfazer-lhes as necessidades materiais. Não é multiplicando os estabelecimentos de cultura e aperfeiçoando os programas de televisão, este indigesto e sutil "tranqüilizante", que saciaremos sua fome. Os homens precisam de harmonia, e não de um excesso de felicidade pasteurizada, distribuída por uma supermercado automatizado (1).
É nesse dilema existencial que estamos todos nós envolvidos: solucionar a necessidade do pão ou buscar a felicidade da liberdade (para ser o que se quer ser ou para ver o que se quer ver). Retirar o trigo da terra (o pão) ou encontrar o trigo da vida (o Amor ou a felicidade)?
O espaço da terra vem servindo tanto para se colher o trigo quanto para se explorar recursos na fabricação de variados artefatos. O valor da terra vem se tornando produto da sua capacidade de utilidade. A visão e a importância do encontro entre o ser e a natureza foram praticamente esquecidos e em seu lugar se instalou a obrigação do indivíduo eficiente em explorar todos os recursos da terra e dela retirar além do seu sustento a sua riqueza material utilitária (o lucro). O limite do encontro se perdeu no espaço e no domínio da exploração. A espontaneidade do encontro foi substituída pela força da obrigação do “dever cumprido” para a obtenção de fins unicamente utilitários. As técnicas foram aperfeiçoadas tanto para aumentar a colheita do trigo quanto para aumentar a exploração de um fim utilitário (a concentração da ganância). A força do trabalho também recebeu profundas modificações tanto no processo da colheita quanto na produção de artefatos eficientes. A base do progresso foi sem dúvida a utilidade da terra na produção eficiente da inteligência racional humana.
Essa mudança de visão acarretou um aumento da força, do ritmo de exploração e da colheita. Houve um aumento significativo da produção e conseqüentemente da concentração de valor e domínio sobre a terra. A terra perdeu o seu caráter Divino de Mãe Natureza e ganhou em conseqüência um caráter sócio-econômico de “fator de produção” ou de "prostituta" (depois de usada é esquecida). Ela deixou, portanto, de ser o espaço de exercício de transcendência existencial do ser pessoal. Em outras palavras, ela se tornou uma mercadoria de valor relativo na visão do indivíduo. Ou seja, um valor imposto pela psicologia do ser individual reduzindo assim a sua imensa importância espiritual/existencial. Isso implica dizer que o valor da terra está, no contexto de valoração do indivíduo, diretamente associado à sua capacidade de resposta aos interesses humanos em sua exploração e produção natural. Quando ela (a terra) já cansada não pode mais servir aos interesses utilitários de eficiência do ser individual deixa de interessar como mercadoria de valor. E se transforma desta forma num triste deserto improdutivo.
A mudança de valor e visão de domínio utilitário sobre a terra fez com que o ser individual sentisse necessidade de incorporar novos e intensos ritmos de exploração utilitária e de produção de colheita. Essa necessidade produziu uma nova organização e concentração vigorosa das forças de trabalho produtivo e competitivo. A concepção convencional (artesanal) pouco organizada e desconcentrada foi então substituída pela forma grupal sistematizada (automatizada). E para tanto um esforço de convencimento era preciso no espaço da psique dos trabalhadores individuais. A idéia da natureza-objeto foi então propagada por uma ciência cética da terra como um espaço de encontro. E assim, criou-se a ideologia da eficiência, produtividade e da competitividade. Homens lutando para superar outros homens. Máquinas fabricadas para vencer outras máquinas. Frias ideologias pensadas para substituir outras ideologias mais geladas ainda. Vidas consumidas para dar sopro à outras vidas. "Verdades" construídas para ocupar o lugar de outras tantas falações e filosofias.
Você conhece o provérbio, que é bem verdade: "Vê mais longe a gaivota que voa mais alto". As gaivotas que você deixou estão no solo, gritando e lutando umas com as outras. Estão a mil e quinhentos quilômetros do paraíso, e você diz que lhes quer mostrar o paraíso, de onde estão! Fernão, elas nem vêem a própria ponta das asas! (2).
A Natureza, em seu conjunto, nos é indispensável, e isso por outras razões além de ser fonte de riquezas e de bens de consumo. Seus valores imateriais não podem ser estimados em termos financeiros...Deixemos de examinar tudo à luz do lucro, pois a Natureza nos oferece bem mais que a renda material... E a esses valores imateriais, e no entanto fundamentais para a felicidade dos homens, que aludia o chefe índio Seatle na carta endereçada ao presidente dos Estados Unidos, a 12 de setembro de 1855, época da grande corrida para o oeste. "O grande chefe branco de Washington faz saber que intenta comprar nossas terras. Como podereis comprar ou vender o céu? O calor da terra? A idéia nos parece estranha. Não possuímos nem a frescura do ar nem a cintilação das águas. Então, como poderíeis adquiri-las de nós? Cada pedaço desta terra é sagrado para meu povo, cada agulha de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina em meio aos bosques sombrios. Cada clareira e cada inseto zumbidor são sagrados na memória e na consciência de minha gente. O ar é preciso ao pele-vermelha, pois todos partilham o mesmo sopro: o animal, as árvores, o homem. O homem branco parece não perceber o ar que respira, mas, talvez por ser eu um selvagem, não logro compreendê-lo [...] Quando o derradeiro pele-vermelha desaparecer da Terra e sua memória não for mais que a sombra de uma nuvem cortando a pradaria, esses rios e florestas guardarão ainda os espíritos dos meus; pois eles amam esta terra como o recém-nascido as pulsações do coração materno. Se vos vendermos nossa terra, amai-a como a amamos, zelai por ela como zelamos, tratai os animais dessas plagas como vossos irmãos. Pois, se todos desaparecessem, o homem morreria de uma enorme solidão espiritual" (1).
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
(1) DORST, Jean. A Força de Ser Vivo. São Paulo: Melhoramentos/Universidade de São Paulo, 1981, p.172-173.
(2) BACH, Richard. A História de Fernão Capelo Gaivota, Rio de Janeiro, Nordica, 1970, p.101-102.
Bernardo Melgaço da Silva - bernardomelgaco@hotmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário