"Existem razões para crer que a Idade Moderna terminou. Muitos sinais indicam que estamos atravessando um período de transição em que algo está morrendo e algo está nascendo, num parto doloroso.
Está ocorrendo uma amálgama de culturas. Uma era está sucedendo a outra e, como nossa civilização não tem um estilo próprio unificado, nem um espírito próprio, nem uma estética própria, qualquer coisa pode acontecer. Tudo é possível, mas nada é certo.
Como em período de transição anteriores, estão sendo agora derrubados até os mais consistentes sistemas de valores e existe uma tendência a citar as opiniões alheias, a imitar e amplificar, em vez de afirmar com autoridade ou integrar.
O sinal central e característico deste período é a crise, ou a transformação da ciência como base da concepção moderna do mundo.
O vertiginoso desenvolvimento desta ciência, com sua fé incondicional na realidade objetiva e sua completa dependência das leis gerais e racionais do conhecimento, conduziu ao nascimento da civilização tecnológica moderna.
Mas a relação com o mundo, que a ciência moderna promove, parece agora ter esgotado sua potencialidade. Torna-se cada vez mais claro que está faltando alguma coisa a esta relação, pois não se consegue ligar à mais intrínseca natureza da realidade nem à experiência natural do homem e, na realidade, é mais uma fonte de desintegração e de dúvidas do que de integração e de sentido.
Produz um estado de esquizofrenia em que o homem, como observador, está se alienando completamente de si mesmo como ser. Embora atualmente saibamos infinitamente mais a respeito do universo do que nossos antepassados, parece cada vez mais claro que eles sabiam algo que nos escapa.
Quanto mais a fundo são descritos nossos órgãos e suas funções, tanto menos conseguimos captar o espírito, o propósito e o significado do sistema que eles formam em seu conjunto e constitui nosso próprio "eu".
Assim, estamos numa situação paradoxal. Desfrutamos de todas as conquistas da civilização moderna, mas não sabemos para onde ir. O mundo de nossas vivências parece caótico, desconexo e confuso.
Em nossa percepção do mundo parece não haver forças integradoras, nem significados unificadores, nem uma verdadeira compreensão interior dos fenômenos.
Esse estado de coisas tem conseqüências sociais e políticas. Esta singular civilização planetária, a que todos pertencemos, nos põe em confronto com desafios globais, perante os quais reagimos sem esperança, porque ela globalizou apenas a superfície de nossas vidas.
E, ao que parece, quanto menos respostas esta era de conhecimento racional oferece às perguntas básicas do ser humano, tanto mais profundamente as pessoas se aferram às velhas certezas de sua tribo. Por isso, as culturas individuais, cada vez mais misturadas pela civilização contemporânea, estão tentando com renovados impulsos readquirir ou reforçar sua identidade, reconhecendo-se em suas próprias características internas e ressaltando as diferenças que as separam das outras.
Daí resulta que os conflitos culturais são, logicamente, cada vez mais perigosos e mais difíceis de resolver do que em qualquer outro período da história.
O fim da era do racionalismo foi catastrófico: apetrechados com as mesmas armas supermodernas de outrora, freqüentemente obtidas das mãos dos fornecedores de sempre, e acompanhados pontualmente pelas câmaras de TV, os membros de variados cultos tribais estão em guerra entre si.
Durante o dia, trabalhamos com as estatísticas e, ao anoitecer, consultamos a astrologia e nos assustamos com histórias truculentas sobre vampiros.
O abismo entre o racional e o espiritual, a técnica e a moral ou universo e o singular se torna cada vez mais profundo.
Os políticos, logicamente, estão preocupados em garantir a sobrevivência de uma civilização ao mesmo tempo global e multicultural. Eles indagam como fazer para pôr em funcionamento mecanismos de convivência pacífica, respeitados por todos, e quais devem ser os princípios gerais a estabelecer. A necessidade de responder com urgência especial a estas perguntas foi ressaltada pelos dois mais importantes acontecimentos políticos da segunda metade do século 20: o colapso da hegemonia cultural e a queda do comunismo.
A ordem mundial artificial das décadas passadas desmoronou, mas ainda não surgiu uma ordem nova e mais justa.
A principal tarefa política dos últimos anos deste século é, portanto, criar um novo modelo de coexistência entre as diferentes culturas, povos, raças e esferas religiosas, dentro de uma única civilização interconectada.
Esta tarefa é sobretudo extremamente urgente, pois estão aumentando de forma mais séria do que nunca outras ameaças contra a humanidade, provocadas pelo desenvolvimento unidimensional. da civilização.
Na busca de fontes mais naturais para a criação de uma nova ordem mundial geralmente recorremos às idéias básicas da democracia moderna: respeito pelo ser humano como indivíduo, tanto homem como mulher, e por suas liberdades e direitos inalienáveis, bem como pelo princípio de que todo o poder vem do povo.
Sinto porém, com cada vez mais força, que estas idéias não são suficientes, mas devemos ir mais além e mais fundo. A solução que elas oferecem ainda é moderna e tem origem num clima do Século das Luzes, bem como numa visão do homem e de seu relacionamento com o mundo que foi característica da esfera euro-americana durante os dois últimos séculos.
Contudo, hoje em dia, as soluções clássicas da era moderna não dão por si mesmas uma resposta satisfatória aos problemas apresentados.
O mesmo princípio de que os direitos inalienáveis do homem foram concedidos pelo Criador nasceu da noção tipicamente moderna de que o ser humano era o pináculo da criação e o senhor do mundo.
Este moderno antropomorfismo pretende, inevitavelmente, dizer que o Criador, que, segundo se afirma, outorgou ao homem seus direitos inalienáveis, começa a desaparecer do mundo.
O Criador, que estava muito além da compreensão e do alcance da ciência moderna, foi sendo gradualmente empurrado para a esfera privada das pessoas e mesmo para a esfera das fantasias privadas, isto é, para um lugar onde os deveres públicos não se aplicavam mais.
Na minha opinião, a idéia de que os direitos e as liberdades do homem devem ser parte integral de toda ordem mundial legítima precisa ser aplicada num lugar diferente e de um modo diverso atual.
Para ser algo mais que um slogan repetido e não respeitado pela metade do mundo, esta idéia não pode ser expressa na linguagem desta era agonizante, caracterizada pela fé numa relação puramente científica com o mundo.
Hoje, a única verdadeira esperança das pessoas reside, provavelmente, na renovação da certeza de que estamos enraizados na terra e, ao mesmo tempo, no cosmos. A consciência deste enraizamento nos dá a capacidade de autotranscendência.
Nos foros internacionais, os políticos podem reiterar mil vezes que a base para uma nova ordem mundial é o respeito universal pelos direitos humanos, mas este não significará nada se o imperativo não vier do respeito pelo milagre do ser, do universo, da natureza e de nossa própria existência.
No mundo atual, multicultural, o único caminho seguro para a coexistência pacífica deverá ser inspirado pela autotranscendência, porque a transcendência é a única alternativa real para a extinção.
Penso que o homem só poderá se realizar na liberdade, se não esquecer que esta é um dom de seu Criador". Vaclav Havel
Vaclav Havel, escritor, é [ex-]presidente da República Checa.
(JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO - 23/04/95 - PAG.A2)
Está ocorrendo uma amálgama de culturas. Uma era está sucedendo a outra e, como nossa civilização não tem um estilo próprio unificado, nem um espírito próprio, nem uma estética própria, qualquer coisa pode acontecer. Tudo é possível, mas nada é certo.
Como em período de transição anteriores, estão sendo agora derrubados até os mais consistentes sistemas de valores e existe uma tendência a citar as opiniões alheias, a imitar e amplificar, em vez de afirmar com autoridade ou integrar.
O sinal central e característico deste período é a crise, ou a transformação da ciência como base da concepção moderna do mundo.
O vertiginoso desenvolvimento desta ciência, com sua fé incondicional na realidade objetiva e sua completa dependência das leis gerais e racionais do conhecimento, conduziu ao nascimento da civilização tecnológica moderna.
Mas a relação com o mundo, que a ciência moderna promove, parece agora ter esgotado sua potencialidade. Torna-se cada vez mais claro que está faltando alguma coisa a esta relação, pois não se consegue ligar à mais intrínseca natureza da realidade nem à experiência natural do homem e, na realidade, é mais uma fonte de desintegração e de dúvidas do que de integração e de sentido.
Produz um estado de esquizofrenia em que o homem, como observador, está se alienando completamente de si mesmo como ser. Embora atualmente saibamos infinitamente mais a respeito do universo do que nossos antepassados, parece cada vez mais claro que eles sabiam algo que nos escapa.
Quanto mais a fundo são descritos nossos órgãos e suas funções, tanto menos conseguimos captar o espírito, o propósito e o significado do sistema que eles formam em seu conjunto e constitui nosso próprio "eu".
Assim, estamos numa situação paradoxal. Desfrutamos de todas as conquistas da civilização moderna, mas não sabemos para onde ir. O mundo de nossas vivências parece caótico, desconexo e confuso.
Em nossa percepção do mundo parece não haver forças integradoras, nem significados unificadores, nem uma verdadeira compreensão interior dos fenômenos.
Esse estado de coisas tem conseqüências sociais e políticas. Esta singular civilização planetária, a que todos pertencemos, nos põe em confronto com desafios globais, perante os quais reagimos sem esperança, porque ela globalizou apenas a superfície de nossas vidas.
E, ao que parece, quanto menos respostas esta era de conhecimento racional oferece às perguntas básicas do ser humano, tanto mais profundamente as pessoas se aferram às velhas certezas de sua tribo. Por isso, as culturas individuais, cada vez mais misturadas pela civilização contemporânea, estão tentando com renovados impulsos readquirir ou reforçar sua identidade, reconhecendo-se em suas próprias características internas e ressaltando as diferenças que as separam das outras.
Daí resulta que os conflitos culturais são, logicamente, cada vez mais perigosos e mais difíceis de resolver do que em qualquer outro período da história.
O fim da era do racionalismo foi catastrófico: apetrechados com as mesmas armas supermodernas de outrora, freqüentemente obtidas das mãos dos fornecedores de sempre, e acompanhados pontualmente pelas câmaras de TV, os membros de variados cultos tribais estão em guerra entre si.
Durante o dia, trabalhamos com as estatísticas e, ao anoitecer, consultamos a astrologia e nos assustamos com histórias truculentas sobre vampiros.
O abismo entre o racional e o espiritual, a técnica e a moral ou universo e o singular se torna cada vez mais profundo.
Os políticos, logicamente, estão preocupados em garantir a sobrevivência de uma civilização ao mesmo tempo global e multicultural. Eles indagam como fazer para pôr em funcionamento mecanismos de convivência pacífica, respeitados por todos, e quais devem ser os princípios gerais a estabelecer. A necessidade de responder com urgência especial a estas perguntas foi ressaltada pelos dois mais importantes acontecimentos políticos da segunda metade do século 20: o colapso da hegemonia cultural e a queda do comunismo.
A ordem mundial artificial das décadas passadas desmoronou, mas ainda não surgiu uma ordem nova e mais justa.
A principal tarefa política dos últimos anos deste século é, portanto, criar um novo modelo de coexistência entre as diferentes culturas, povos, raças e esferas religiosas, dentro de uma única civilização interconectada.
Esta tarefa é sobretudo extremamente urgente, pois estão aumentando de forma mais séria do que nunca outras ameaças contra a humanidade, provocadas pelo desenvolvimento unidimensional. da civilização.
Na busca de fontes mais naturais para a criação de uma nova ordem mundial geralmente recorremos às idéias básicas da democracia moderna: respeito pelo ser humano como indivíduo, tanto homem como mulher, e por suas liberdades e direitos inalienáveis, bem como pelo princípio de que todo o poder vem do povo.
Sinto porém, com cada vez mais força, que estas idéias não são suficientes, mas devemos ir mais além e mais fundo. A solução que elas oferecem ainda é moderna e tem origem num clima do Século das Luzes, bem como numa visão do homem e de seu relacionamento com o mundo que foi característica da esfera euro-americana durante os dois últimos séculos.
Contudo, hoje em dia, as soluções clássicas da era moderna não dão por si mesmas uma resposta satisfatória aos problemas apresentados.
O mesmo princípio de que os direitos inalienáveis do homem foram concedidos pelo Criador nasceu da noção tipicamente moderna de que o ser humano era o pináculo da criação e o senhor do mundo.
Este moderno antropomorfismo pretende, inevitavelmente, dizer que o Criador, que, segundo se afirma, outorgou ao homem seus direitos inalienáveis, começa a desaparecer do mundo.
O Criador, que estava muito além da compreensão e do alcance da ciência moderna, foi sendo gradualmente empurrado para a esfera privada das pessoas e mesmo para a esfera das fantasias privadas, isto é, para um lugar onde os deveres públicos não se aplicavam mais.
Na minha opinião, a idéia de que os direitos e as liberdades do homem devem ser parte integral de toda ordem mundial legítima precisa ser aplicada num lugar diferente e de um modo diverso atual.
Para ser algo mais que um slogan repetido e não respeitado pela metade do mundo, esta idéia não pode ser expressa na linguagem desta era agonizante, caracterizada pela fé numa relação puramente científica com o mundo.
Hoje, a única verdadeira esperança das pessoas reside, provavelmente, na renovação da certeza de que estamos enraizados na terra e, ao mesmo tempo, no cosmos. A consciência deste enraizamento nos dá a capacidade de autotranscendência.
Nos foros internacionais, os políticos podem reiterar mil vezes que a base para uma nova ordem mundial é o respeito universal pelos direitos humanos, mas este não significará nada se o imperativo não vier do respeito pelo milagre do ser, do universo, da natureza e de nossa própria existência.
No mundo atual, multicultural, o único caminho seguro para a coexistência pacífica deverá ser inspirado pela autotranscendência, porque a transcendência é a única alternativa real para a extinção.
Penso que o homem só poderá se realizar na liberdade, se não esquecer que esta é um dom de seu Criador". Vaclav Havel
Vaclav Havel, escritor, é [ex-]presidente da República Checa.
(JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO - 23/04/95 - PAG.A2)
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