Física: a mensagem e o código
- O CÓDIGO CÓSMICOHeinz R. Pagels.
Um cientista responde ao desafio actual de divulgar a ciência e tornar a tecnologia, compreensível.
Jorge Dias de Deus
"1 - A CONTINUADA situação de crise económica por que têm passado os países industrializados mais ou menos desenvolvidos em especial na Europa Ocidental, levou a um retraimento no investimento em Investigação Científica e Desenvolvimento. Os bons tempos do pós-guerra, que se estenderam até à década de 60, quando a confiança, na Ciência e na Tecnologia ainda era cega e os orçamentos fáceis, já passaram e talvez não estejam para voltar.
O que cientistas e tecnológicos, individualmente ou em instituições (caso da Royal Society), e em alguns casos até governos (caso da França), têm vindo a descobrir é que se a Ciência e a Tecnologia quiserem receber apoio social e económico têm que conquistar a população, os representantes políticos eleitos, os governantes, os empresários. À atitude «generosa» do cientista que se esforça por explicar ao «povo» as delicadezas e complicações da alta ciência está-se a sobrepor a atitude «política» do cientista que se esforça por explicar ao «público» as vantagens e interesse da ciência e tecnologia. É neste quadro de mudança, tendo talvez pouco a ver com épocas passadas, que deve hoje em dia ser vista a questão da divulgação científica.
A tarefa de divulgar a Ciência e de tornar a Tecnologia compreensível é actualmente uma tarefa essencial que se coloca à comunidade de cientistas e tecnológos nos países desenvolvidos. Sob pena dessa comunidade perder aceitação social e apoio da população que vota e que, em última análise, influencia as decisões. Em sociedades abertas e democráticas não podem de facto existir actividades acima de toda a suspeita, fechadas nos seus universozinhos de marfim - mas reclamando uma fatia no orçamento e uma fracção, pequena é certo, dos impostos.
A situação para os cientistas e tecnológos é (ou deveria ser) perfeitamente clara: há que chegar junto do público em geral, utilizar desinibidamente os meios de comunicação e toda a arte de cativar e entreter. Sem quaisquer complexos, sem timidez.
Como fizeram e fazem os charlatões da paraciência e os mestres da ficção científica.
Reconversão da imaginação
2 - VÊM estas linhas a propósito da observação do patriarca e prémio Nobel da Física Isidor Rabi de que os cientistas fizeram menos para transmitir ao grande público o que é a actividade científica do que os escritores de ficção científica. A observação é profunda e transmite bem o mal-estar da comunidade científica. É verdade que alguns nomes, poucos, se mostraram capazes de competir com os escritores de ficção científica ou de ser eles próprios escritores de ficção científica. Gamow, Asimov, Hoyla, Bronowski, Sagan são exemplos clássicos. Mas tal não chega. A mensagem de Rabi, sendo profunda, é ao mesmo tempo simples: há um espaço dos que se aproveitam da ciência a ser explorado pelos que fazem ciência.
A mensagem foi ouvida pelo profissional de ciência Heinz Pagels que decidiu, após ouvir Rabi - assim ele conta - escrever O Código Cósmico. O objectivo, apresentado na Introdução, é, aparentemente, claro «... eu desejo partilhar a excitação das recentes descobertas em física com as outras pessoas - descobertas que fornecem uma visão sobre a estrutura última da matéria, a origem e fim do universo, e a nova realidade quântica. Nos últimos dez anos os físicos aprenderam mais acerca do universo do que - nos séculos anteriores - eles desvendaram um novo quadro da realidade que requer uma reconversão da nossa imaginação. O mundo visível não é nem matéria nem espírito mas a invisível organização da energia.»
Como se vê Heinz Pagels propõe-se francamente responder às necessidades actuais da divulgação científica: abandono da torre de marfim e «desejo de partilhar» com os outros a vivência científica; uso da linguagem viva da ficção científica com chamada fácil à «origem e fim do universo»; um pouco de jornalismo sensacionalista com referência aos «últimos dez anos, etc.»; e um pouco de retórica cara à literatura para-científica com um mundo que «não é nem matéria nem espírito»...
3 – Quanto ao livro em si, ele é excelente. A primeira parte e também a mais longa, «0 Caminho para a Realidade Quântica», é a mais interessante e deveria constituir leitura obrigatória com a visão científica actual do mundo e compreender algumas das componentes subterrâneas que impregnam a cultura moderna. Pagels cumpre bem a promessa de explicar e transmitir aos outros a sua visão apaixonada e contagiante da ciência contemporânea.
Einstein, cuja biografia e actividade científica vêm descritas com bastante pormenor e de forma atraente,. é apresentado como o último grande clássico antes da época moderna. A sua crença na realidade objectiva exterior, na descrição completa espaço-temporal dessa mesma realidade, na construção lógica da teoria a partir de dados empíricos não o tornavam muito diferente de Newton.
De facto, pode imaginar-se o mundo de Einstein superiormente presidido por um clássico Deus que tem perante si o passado, o presente e o futuro, que vê as ligações todas entre as coisas e que conhece as causas e os mecanismos de transformação. Por outras palavras, Einstein tinha fé no determinismo clássico.
Ora, a nova ciência, que borbulhava no começo do século, a física quântica, iria abalar severamente todo esse esquema de super-homens e de realidades exteriores extra-humanas. Se Einstein tinha uma fé a defender, os jovens turcos de Mecânica quântica - Bohr, Heisenberg, Schrödinger, Dirac, Pauli e muitos outros - tinham um mundo a conquistar. Einstein fica para trás, isolado no seu grande génio, incapaz de percorrer os caminhos do acaso e da incerteza que os outros abriam.
O fim do determinismo
Segue-se no livro a história fascinante da Mecânica Quântica. Aí se assiste ao empenhamento da jovem geração em construir uma matemática consistente com as experiências sem quaisquer preocupações epistemológicas ou metafísicas. Heisenberg e Dirac, por um lado, elaboram a mecânica das matrizes. Broglie e Schrödinger, por outro, chegam à mecânica ondulatória. Uns e outros fazem, de facto, a Mecânica Quântica. Em ambos os casos se anuncia o fim do determinismo rígido e duma objectividade sem sujeitos. Com as relações de incerteza de Heisenberg afirma-se que não se pode ao mesmo tempo saber tudo sobre as partículas do mundo quântico. Com Max Born explicita-se a ideia de que o conhecimento da física quântica tem só um valor probabilístico. Não há caminhos pré-determinados e não há certezas absolutas.
É Niels Bohr que, com a. sua «Escola de Copenhague» fornece à fundamentação filosófica para a Mecânica Quântica. «É errado pensar que a tarefa da física é descobrir como se comporta a Natureza. A física trata só daquilo que nós podemos dizer sobre a Natureza» - afirma Bohr. Não há realidade em si, mas realidade observada. E há aspectos complementares dicotómicos, dessa realidade que impedem a descrição completa e o determinismo. Para Bohr, o fim do determinismo - tal como anteriormente o fim do geocentrismo ou do criacionismo - não era um defeito ou uma limitação da Mecânica Quântica. Representava um progresso na compreensão da realidade, com implicações filosóficas da maior importância.
A física quântica cresceu, desenvolveu-se e continua de boa saúde. Estendeu-se a muitos domínios como a electrónica, a biologia molecular, a supercondutividade. A Escola de Copenhague tornou-se dominante e aceite pela esmagadora maioria dos cientistas.
Mas não foi aceite por Einstein, que continuou agarrado ao determinismo e ao realismo clássicos. Se a mecânica quântica não era capaz de chegar ao realismo objectivo e ao determinismo rígido isso dever-se-ia ao facto da teoria ser incompleta, de existirem grandezas, variáveis que não estavam a ser tomadas em
conta. Nascia a famosa ideia, algo não científica, das variáveis escolhidas. Einstein, juntamente com Podolsky e Rosen, imaginaram em 1935 uma experiência que provaria o carácter incompleto e portanto insatisfatório da mecânica quântica. A discussão reacendeu-se envolvendo filósofos e físicos e foi-se mantendo, embora não muito animada e sem passar de discussão, durante cerca de 30 anos. Até que em 1965 John Bell descobre uma maneira experimental de decidir quem tinha razão, se o grupo de Einstein (e o realismo objectivo de determinismo rígido) ou a Escola de Copenhague (e o realismo de observação e o determinismo probabilístico). As experiências foram finalmente feitas em 1982-83 e muitas vezes repetidas, sempre com resultado favorável à mecânica quântica e à interpretação de Bohr.
As questões da objectividade e do determinismo nos termos postos pela teoria quântica não podem mais ser iludidas - essa a conclusão a tirar da discussão de Pagels. Fazem parte da cultura e fazem parte do futuro.
Decifrar o código
4 - A segunda parte do livro constitui uma breve história da física das partículas elementares: convencional, acessível, actualizada e útil.
Na terceira parte Pagels revela-nos a sua ideia sobre o Código Cósmico: «Eu penso que o universo é uma mensagem escrita em código, o código cósmico, e é tarefa do cientista decifrar esse código». A ideia em si não traz grande novidade, pois trata-se do velho problema da leitura do Livro da Natureza. O que é novo é considerar que esse código é fornecido pela física quântica.
E aqui voltamos à discussão da mecânica quântica e ao desenvolvimento nos últimos anos da física das partículas elementares, nos domínios do infinitamente grande e do infinitamente pequeno. Para Pagels, o contacto da humanidade com o mundo invisível dos quanta, e com as escalas do infinitamente grande e do infinitamente pequeno irá influenciar o destino da espécie humana. «O desafio está em tornar conscientes estas realidades invisíveis e em tornar humano os poderes encontrados». Um desafio que fica para a nossa Civilização: ou é capaz de social e culturalmente integrar a ciência e imaginar um futuro contando com os conhecimentos do código cósmico, ou irá antes perecer-ingloriamente por ignorância, por medo, por incapacidade de adaptação à nova ordem cósmica?
Ou estará Pagels a exagerar?"
(Ed. Gradiva, col. «Ciência Aberta», 1986, 416 págs./1000$00)
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